quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O adultério de Capitolina - FINAL


(...)
Até então Bento não se dera conta de que Capitu pudesse ter cometido adultério. Para ele ainda eram estranhas coincidências. Todavia, quando Escobar morre afogado, Bento começa a desconfiar piamente que houve traição, logo no velório. Percebeu que todas as coincidências faziam sentido, pois não se tratava somente de coincidirem, os fatos estavam ali o tempo todo, bastava enxerga-los melhor. Capitu, no velório, deixou transparecer uma tristeza de apaixonada, infinitamente mais emotiva que Sancha. Seu olhar sobre o cadáver, ainda que por alguns instantes, era intensamente melancólico e Bento, a partir daí, passou a ter um olhar mais cético. “...Capitu olhou alguns instantes para o cadáver, tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (cap. 123)

Foi realmente depois da morte de Escobar que Bentinho deixou-se tomar pela cisma e por dúvidas que o afligiam. Passou de homem amado e feliz com a família, para um homem com um coração agoniado, já não sabia mais se era pela morte do melhor amigo ou pela possível traição que Escobar deixará de legado a ele em vida.

Afinal, Capitu era uma mulher emotiva? Pouco me recordo de ela sofrer na infância e na juventude quando namorava Bentinho. Por que então a morte de Escobar lhe causava tanta dor? Talvez ela tenha se afeiçoado tanto a Escobar que não teve como segurar o pranto. Mas o que tanto foi Escobar para Capitu, senão amigo da família? “As pessoas valem o que vale a afeição da gente...” (Bento Santiago). Interessante como o autor, ou melhor, o narrador nos envolve nesta trama. Como no capítulo 129 quando Bento dedica este a D. Sancha, viúva de Escobar. É tanta verossimilhança que quase nos faz crer que a obra Dom Casmurro é baseada em fatos reais. Mas reais mesmo são os acontecimentos narrados por Bento que nos faz ter certeza da culpa de Capitu.

Depois de um bom tempo da morte de Escobar, Bentinho já não era mais o mesmo com Capitu. Era um marido calado e aborrecido. Um dia, para aumentar mais sua desconfiança e raiva, Capitu comentou que Ezequiel tinha olhos como os do falecido Escobar. Até ela percebeu o que ele havia percebido há tempos. Bentinho, por sua vez, concordou, mas fez expressão de pouco caso, como quem não quisesse tocar em um assunto que o feria por dentro, porque não eram somente os olhos que achava parecidos... “Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Escobar vinha assim surgindo da sepultura, para se sentar comigo à mesa...” (cap. 132). E todas as ações feitas por Ezequiel eram repulsivas para Bento, já estava difícil de suportar. Por mais hiperbólico que Bentinho fosse, inventar a imagem de outra pessoa no próprio filho sem de fato parecerem é não estar bem das faculdades mentais, mas Bento era um homem são.

Você então deve estar se perguntando: se Capitu realmente traiu Bentinho e ele passou a ter certeza disso, então por que ele não foi tirar satisfações com ela logo? Por que ficou agonizando essa dúvida (ou certeza) e tornou sua vida fastidiosa por isso? Simples. Por amor. Por muito amar Capitu e não suportar pensar em deixá-la. Ainda que a raiva o tomasse por completa quando pensava em Capitu e em Ezequiel, sempre que olhava para ela linda, graciosa, de olhar envolvente e o jeito mais doce se recordava que jamais houvera amor maior. Além disso, Capitu fazia o tipo Amélia mesmo (como eu já havia dito), mulher de verdade (para a época), esperava na janela o marido chegar do trabalho e outros pequenos gestos que o desarmava, enchendo-o de coragem para continuar a aguentar tal castigo dia após o outro.

Passado alguns anos a morte de Escobar, Bento já conseguia se referir a ele, em pensamento, como um “comborço, termo atualmente conhecido como amante. Seu casamento com Capitu também já beirava o precipício, tamanha a certeza da traição dela. Bentinho passou a ficar mais tempo fora de casa para evitar encontrar Ezequiel e ter que conviver com eles em casa. Isso ficou cada dia mais frequente, tanto que em algumas vezes percebia novidades no filho, herdadas de Escobar. “Ezequiel vivia agora mais fora da minha vista; mas a volta dele (...) era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma.” (cap. 132).

A semelhança era tão nítida aos olhos de Bentinho (e aos meus também agora) que o ódio lhe ultrapassava todos os sentidos. Ezequiel morria de amores pelo pai, mas Bento referia-se a ele como o “pequenino demo”(Demo de demônio? o.0), tamanha era sua aversão. Sempre que ele tinha ideias maléficas, se ausentava de casa no intuito de se distrair com outras coisas e esquecer. Pensou até em se matar e chegou a comprar veneno, só não sabia se queria cometer suicídio ou então, tomado pela tragédia Otelo que matou a amada por desconfiança, matar Capitu. A diferença era que Desdêmona, a amada de Otelo, era inocente.
Botou no café o veneno que comprou e ficou pensando se bebia ou não. Nesta hora, Ezequiel entrou no escritório onde Bento estava. Num ímpeto impulso, Bentinho ofereceu insistentemente café envenenado ao filho (esse capítulo é ótimo). “Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio...” (cap. 137). Mas ele não o fez.

“- Não, não, eu não sou teu pai!” (cap. 137), afirmou em voz alta. E acreditava muito nisso, pois tinha diante dos olhos um filho imagem e semelhança de outro homem... Para ele, a própria natureza jurava por si e ele não queria duvidar dela. Neste momento de desabafo, Capitu escutou e pela 1ª vez percebeu em Bento uma desconfiança, mesmo sabendo que ele tinha muitos ciúmes dela. “Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!”, exclamou Capitu no cap. 138. Mas Capitu, depois disso, deixou mais claro ainda que cometeu adultério quando concordou que Ezequiel parecia mesmo com Escobar e se justificou. “Sei a razão disso; é a causalidade da semelhança...” (cap. 138). Espere. Meu filho nasce com os traços de outro homem muito conhecido e é só fruto da imaginação? É só causa e efeito da semelhança? E por acaso semelhança não é sinônimo de imitação, de ser igual? Portanto, se Ezequiel é semelhante então ele tem a aparência vívida e perceptível. Bento riu com essa justificativa de Capitu. E eu também.

Depois disso, a separação deles foi inevitável. Capitolina e Ezequiel foram embora para a Suiça. Ainda se correspondiam por cartas e Bento as respondia, entretanto nunca mais quis vê-la. Anos mais tarde, Capitu morre e Bentinho dedicou apenas uma linha do livro para anunciar sua morte (isso é o que eu chamo de guardar rancor).  Ezequiel então foi visita-lo, agora já adulto e vivido. Bento não sabia se era mesmo Ezequiel ou a própria reencarnação de Escobar. “...correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário São José, (...) o mesmo rosto do meu amigo. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar.” (cap. 145). É como se Escobar tivesse ressurgido em cada gesto, cada riso, cada palavra, cada atitude de Ezequiel. Tanto ódio, tanto rancor não seria o tempo e a distância que amenizariam. Ainda neste encontro, desejou que Ezequiel morresse de lepra. Ezequiel morreu de febre tifoide numa viagem a Jerusalém com amigos tempos depois.

Bento Santiago encerra sua história de vida, um tanto quanto agridoce, acreditando, assim como eu, no adultério de Capitu. “E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, é e a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!” (último parágrafo do livro).  Dom Casmurro foi lançado em 1900. Machado morreu em 1908. Nenhum crítico nesses oito anos jamais ousou negar o adultério de Capitu. Então por que agora deveríamos?

Considerações finais:
Confesso! Confesso que todas as tentativas de justificar a culpa de Capitolina são passíveis de falhas. Apesar de ficar envolvida com a trama, a ponto de enxergar com olhos de Bentinho, há possibilidades maiores de Bento Santiago ter pirado do meio da história pra lá.  Hehe.

Realmente, não dá pra confiar extremamente nas justificativas evasivas de Bentinho. De tanto desconfiar, acreditou nas próprias cismas. Seu erro maior foi não ter investigado melhor o que o afligia desde a juventude, não procurar a verdade e ouvir a versão de Capitu para continuar uma relação sólida e feliz com sua amada. Se deixou levar pelo ciúme doentio, pelas picuinhas de José Dias, pelas coincidências (ainda que muiiito suspeitas) sobre a aparência de Ezequiel.

Deve-se levar em consideração também quando o romance foi escrito. Machado de Assis escreveu Dom Casmurro no final do século XIX, época em que havia ainda muito preconceito contra a mulher. Além disso, Bento é narrador, personagem, o “traído”, o coitado, o principal do romance impressionista (mas também pode ser cínico, obcecado e louco); ou seja, só há uma versão de toda a história, a de Bento Santiago. Justo? Não. Mas o realismo com que detalhou cada momento torna a obra atraente, aberta para tantas interpretações que essa minha, por exemplo, mil irão concordar e um milhão discordará. Certamente há outras justificativas convincentes para provar o contrario do que eu escrevi, além dessas citadas agora. Entretanto, isso ficará para uma próxima conversa. Mas de uma coisa não iremos divergir: a GENIALIDADE DO AUTOR.
FIM

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