sábado, 5 de fevereiro de 2011

O adultério de Capitolina - Parte II

Antes de dar início a leitura deste texto, sugiro que leia O adultério de Capitolina – Parte I para melhor compreensão da narrativa , pois este texto dá continuidade aos fatos anteriormente mencionados. Se já leu a 1ª parte, desconsidere esta sugestão. Boa leitura!




Fantasiosas ou não, tudo que Bento (ou Machado de Assis, depende da sua interação com a narrativa) deixou escrito em Dom Casmurro foi para causar comoção. E a mim não restam dúvidas senão a de um homem traído. Bentinho não fez outra coisa a não ser contar momentos inesquecíveis de seus longos anos ao lado da amada Capitu. Ora ora, se você não é capaz de crer nos fatos que o livro menciona, então não crês em nada do livro, nem em Capitu tampouco em Bento. Até que ponto acreditas? Dom Casmurro é tudo ou nada, não tem meio termo, meias palavras. Ou você acredita que Capitolina é inocente ou você tem certeza da traição da mesma e essa segunda opção está bem mais óbvia. Já que é para levar o livro a sério, então levemos.

Apesar de parecer o contrário, Bento Santiago não tinha obsessão amorosa por Capitu. Ele a amava muito e como todo amor intenso, tinha seus ciúmes, um egoísmo natural de quem quer bem ao outro e um doce desejo de seguir seus passos. Isso é mais comum do que se imagina. E ele provou sua não obsessão quando ainda estava no Seminário. Bento não pensava 24h por dia em Capitu, também ficava a imaginar outras mulheres, ou melhor, outras pernas. “De noite, sonhei com elas. Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. (...) trepadas no ar, choviam pernas e pés sobre a minha cabeça.” (cap. 58).
 
Isso, caro leitor, foi somente para mostrar que Bentinho não era cego por Capitolina quanto dizem por ai. Bento Santiago era um homem, ainda que do século retrasado, mas era só um homem.  Apesar de reclamar da fraca memória (claro, não se espera muita coisa de um senhor que viveu meio século), Bentinho narra tudo com tanta vivacidade que chego a duvidar se deveras lembra de tanto ou inventara algumas coisas para impressionar. Mas ele não seria tão meticuloso, precisaria de uma história inteiramente falseada para sustentar tantos fatos. E a única coisa que ele quer provar é o que ficou óbvio, a traição de Capitu.

Voltando a Capitu. Enquanto Bentinho se lamentava muito à distância da amada por conta do seminário, Capitolina era só alegria longe dele. “A notícia que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo.” (cap. 62). Exagero? Não há nada de errado nisso. Quando o assunto é o sentimento, o discurso humano se alterna entre partes excessivas e diminutivas que ao final se ajustam.

Nesta época, ninguém sabia do romance de Bento e Capitu e ela, com tanta naturalidade e dissimulada como só ela, dispersava todos sobre seu romance com Bentinho como se deveras sentisse o que dizia aos outros – nada! Bentinho reconhecia Capitu como um anjo. Nunca teve nenhuma desconfiança relevante dela, somente bobos ciúmes de namorado. Mas o tempo foi se encarregando de abrir-lhe os olhos e mostrar a verdade de um único e decisivo acontecimento.

Mas que Amélia que nada, Capitu sim que era mulher de verdade. Dissimulada sim, mas lépida e, principalmente, mulher por dentro e por fora. Daquelas de deixar homens a seguindo com os olhos por onde passa e encantadora para quem a conhece intimamente. Independente de qual tenha sido a conduta de Capitu, eu a admiro incansavelmente. E Bento também percebia isso e o amor por ela era a coisa mais importante para ele. “Amai, rapazes! E, principalmente, amai moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao mal , aroma ao infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes!”, aconselhou Bentinho no capítulo 86. É, o diabo pode não ser tão feio como se pintam por ai. =X

Bento Santiago e Capitolina casaram-se em 1865, depois que ele saiu do Seminário, foi estudar na Europa e voltou. Sancha, aquela amiga de Capitu, e Escobar já haviam se casado também e já tinham uma filha. Nesta época, Capitu tentou inúmeras vezes engravidar de Bentinho, mas não acontecia, era como se um filho daquela união matrimonial não fosse possível. O casal tinha uma vida de rotina, sem grandes expectativas. E o que acontece quando qualquer coisa em nossas vidas cai na rotina? Desmotivação, vontade de fazer alguma coisa diferente, enfim, talvez isso seja uma boa justificativa para ações audaciosas, camufladas por Capitu.

Todos sabiam do prazer de Escobar em nadar no mar. Capitu começou a fitar o mar como quem não quisesse perder a concentração. E em uma dessas vezes, confessou a Bentinho de um encontro que teve com Escobar em sua ausência, mas não entrou em detalhes sobre o encontro e Bentinho também não perguntou. Um inocente encontro? Talvez. Aconteceu neste dia algo a mais entre os dois? Quem sabe. Nem Escobar achava Capitu esta santa toda que Bentinho achava. “- Capitu é um anjo! – Escobar concordou com a cabeça, mas sem entusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo da mulher.” (cap. 106).

Capitu também começou a ficar uma mulher distraída, Bento vez ou outra a surpreendia com pensamentos longes, calada, reflexiva. Mais tarde, Bentinho começou a atribuir estas distrações momentâneas a possíveis “pesos na consciência”, como se deixasse silenciosamente clara a sua culpa. Todavia, pensar desta forma é cair no exagero de Bento, é se deixar levar por um amor sem medidas, é se envolver até que fiquemos loucos, como ele ficou.

Por fim, Capitu consegue engravidar e nasce Ezequiel. Consegue imaginar o que isso significava para Bento? Aquele filho era a personificação de um amor sólido e duradouro, uma felicidade sem termos. Bentinho não criou Ezequiel com rejeições principias. Amava-o incondicionalmente e fazia todas suas vontades, como um bom pai. Mas o tempo foi passando e algumas estranhas semelhanças entre Ezequiel e Escobar foram surgindo logo nos primeiros anos de vida. Ezequiel adorava imitar as pessoas, mas quem ele imitava com mais naturalidade (se é que imitava, né, ou apenas estava sendo ele mesmo) era Escobar. Até Capitu percebia isso, e ficava bem incomodada. Começou a perceber semelhanças nos pés e nos olhos. Ainda era só um menininho.

Certa vez Bento foi ao teatro à noite sem Capitu. Ela não quis ir dizendo estar indisposta, doentia. Bentinho não ficou para o final da peça, voltou logo no final do 1º ato e ao chegar em casa encontrou Escobar na porta do corredor. Ele justificou-se dizendo que foi até lá procura-lo para tratarem de embargos jurídicos, mas mal conversaram, ficou por resolver. Escobar foi tarde da noite na casa do amigo tratar de assuntos de trabalho e quando Bento chegou em casa ele mal conversou? Fica a pergunta: ele sabia que Capitu estava sozinha? Bento foi até o quarto ver se Capitu estava bem de saúde, pois estaria mal quando ele saiu para o teatro. E ela já não tinha dores, disse que teria agravado o padecimento para que ele fosse se divertir, ou seja, fez questão que ele saísse de casa.(cap. 113). Curioso, né? 

Todos se recordam na primeira parte quando eu mencionei que Capitu e a mãe de Bentinho eram muito amigas, unidas e cúmplices. Mas depois que os dois se casaram e, principalmente, depois que Ezequiel nasceu, sua mãe se afastou do casal, estava mais fria, distante e arredia com Capitu. “Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel” (cap. 115).  Capitu justificou dizendo ser por ciúmes ou porque ela já estava ficando doente. Este indiferentismo de D. Gloria com Capitu e Ezequiel pode indicar que ela já havia percebido semelhanças entre o amigo Escobar e o neto, mas para preservar o casamento do filho, preferia não estender comentários. 

Cada dia mais Bentinho notava gestos de Ezequiel parecidos os de Escobar. Todavia, no início eram somente dúvidas e leves desconfianças. Ainda não sabia se era apenas imitações ou se eram gestos naturais do filho. “Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetitivos, como os das mãos e pés de Escobar, ultimamente, até apanhara o modo de voltar a cabeça, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria.” (cap. 116). Até Sancha, esposa de Escobar, achou Ezequiel parecido com sua filha. Porém, no intuito de negar a si tal semelhança, Bento defendeu: “Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.” (cap. 117), disse ele querendo insinuar que as crianças se parecem porque convivem muito juntas.

Acredito eu que a partir daí Sancha começou a olhar Ezequiel com outros olhos. Nessa desconfiança das aparências, talvez ela já tivesse percebido tamanha traição ocultada. E, com discrição, sentiu-se no direito de pagar na mesma moeda. Foi aí que Bento percebeu uma única vez Sancha olhá-lo diferente, como um flerte mesmo. “Sancha ergue a cabeça e olhou para mim com tanto prazer (...) os olhos de Sancha pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa... Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado.” (cap. 118). Bentinho não iria afirmar tal coisa se de fato não tivesse acontecido. Eles já se encontraram tantas outras vezes e nunca uma atitude como esta fora iniciada por Sancha. Por que então agora ela teria essa vontade pecaminosa e repentina por Bentinho?

Continuará...

2 comentários:

Paulo Victor Gomes disse...

Repito, quem nos conta o que aconteceu (ou que acha que aconteceu) é Bento Santiago. Ele contou momentos inesquecíveis? Sim. Mas por que esses momentos foram inesquecíveis para ele? É absurdamente temerário afirmar que o que Bento narra são fatos! Pode ser, no máximo, o que ele acredita que foram os fatos.

Já que é para levar a sério, vamos refletir sobre a construção psicológica da trama. Se Machado tivesse a intenção de deixar alguma coisa clara, teria adotado outra estratégia narrativa. Existe meio termo em Dom Casmurro sim! O que impera é a dúvida. Ouso afirmar que nem Bento Santiago ficou livre da dúvida. A cruel incerteza que tanto o atormentou é passada linha após linha para o leitor!

A traição de Capitu só pode ser considerada óbvia se fecharmos completamente os olhos para a genialidade machadiana. Não discuto se o “amor” do narrador pela sua musa era cego ou não. Isso é absolutamente irrelevante. Ele gostava dela, isso sim pode ser chamado de fato. E basta! Não caberia em um artigo tantas outras perspectivas que eu posso imaginar para o fato dele ter “sonhado com outras pernas”.

Paro por aqui minha argumentação por um simples motivo. Cansei! Os argumentos do primeiro texto são infinitamente mais papáveis que os deste segundo, e ainda assim, não foram capazes de deixar uma ponta de dúvida em minha opinião.

Só quero concluir questionando uma frase: “Bentinho não iria afirmar tal coisa se de fato não tivesse acontecido”. Por que não? É esse o ponto que deve ser central no debate. Eu teria que escrever um tratado filosófico sobre a subjetividade humana pra começarmos uma discussão séria sobre Dom Casmurro.

Mariana disse...

Não tenho nem o que dizer... =x